quinta-feira, 4 de julho de 2013

OLÍMPICO: O REENCONTRO

crédito imagem: jbettiol

Naquela manhã de setembro o despertar foi distinto. Pela primeira vez, em semanas, uma folga no repetitivo trabalho. Não por acaso negociada para aquele (desejado) sábado. Tamanha era a expectativa que o despertador, companheiro inseparável e estridente do cotidiano, atrasou-se no seu chamado. Na verdade, a expectativa a fizera antecipar-se ao relógio. Dia abafado, com rasgos de luz que ousavam enfrentar nuvens carregadas. Nos vidros turvos da cozinha, talvez reflexos. Após um apressado gole de café, descartando qualquer mastigar, tomou cedo seu rumo. Desta feita, o destino não seria o coletivo abarrotado, o trânsito caótico rumo ao centro da cidade. Não haveria o caminhar metódico na calçada estreita, cotidianamente tomada por anônimos sussurros e ansiedades. Tampouco a chegada ao amplo saguão, à identificação com o cartão magnético junto à catraca (dispensando qualquer privilégio), o posicionamento na fila do elevador, o ingresso e aquela espremida e solene formalidade. Não ouviria o simpático e rotineiro “bom dia” da ascensorista. Não seria içada, com escalas permeadas por solavancos, ao topo do velho prédio para o começo de mais uma entediante jornada laboral. Este era, de fato, um dia diferente de todos os demais. Ao entrar no táxi trajava a camiseta tricolor preciosamente herdada. Tinha o dinheiro contado, uma tosse seca (dos castigos climáticos da Província de São Pedro) e os batimentos acelerados. Na véspera, fora desaconselhada a comparecer e ouvira reprovações severas da preocupada mãe: "Filha, mas o que tu tens na cabeça? Vais sozinha? E ainda por cima pesteada?" Respeitava os zelos domésticos, porém não trocaria aquele reencontro por nada: nenhuma restrição seria pertinente, coisa alguma seria obstáculo.

Ao pisar no sagrado solo da paixão, percebeu se somar a uma multidão vibrante. O som dos milhares que se aglomeravam em torno da imponente edificação se propagava com energia. Antes mesmo de chegar ao pórtico, teve dificuldades para se deslocar. A massa, ávida por saudar e celebrar o magistral templo gremista tomava todos os acessos, todos os caminhos e atalhos. Porém, não cogitou desistir. Queria avançar.  Decidida, rumou ao centro daquele turbilhão de emoções. Escutava músicas, oradores, cânticos apaixonados, crianças alegres e também impacientes, brados e aplausos. Enquanto tateava e prosseguia em meio à impressionante concentração do povo tricolor, levitava nas lembranças afetivas da primeira e inesquecível ida à cancha: da mão firme do avô querido que a conduziu, do calor daquela gente nas arquibancadas, dos gritos de gol, dos afagos da mãe ao contar em casa sua extasiante experiência. Depois houve um período de provações: de chuvas, raios e trovoadas. A  doença progressiva, resultando na perda da visão, a mais infame destas tempestades. Entretanto, particularidade incapaz de abater sua fibra, sua fé na vida e a devoção ao amado Grêmio. Mesmo quando ocorreu a mudança para pagos distantes das raízes, impondo afastamento temporário a tudo que sempre foi caro, jamais deixou de manifestar  seu  gremismo arrebatador. Tudo ao mesmo tempo agora. Tudo retornava, ecoando forte dentro do peito. Envolta nos pensamentos, sentia a mente e o corpo girando. Transpirava. Precisava estar ali, queria estar ali. Necessitava retribuir, agradecer ao colosso de concreto por tantas alegrias. Sabia que o abraço coletivo ocorreria em instantes, mas não queria aguardar todo cerimonial, precisava ir em frente. Embora cercada de contagiante entusiasmo, necessitava seguir avançando. O suor vertia pelo rosto. A cabeça repleta de efusivas recordações. Mais oradores. Saudavam o estádio, o aniversário do clube, a numerosa presença dos torcedores. O ano novo judaico, coincidentemente iniciando naquele final de semana, também foi aplaudido. Shaná Tová! Padre, Pastor, Rabino, Babalorixá. Grêmio ecumênico, Grêmio de todos. Milhares de vozes, chegada de bumbos, trompetes, novas palmas. Quase exaurida, instintivamente surgiu o gesto: ergueu um dos braços, de súbito, e fez reluzir aos céus o bastão de alumínio (seria um cajado?). Ato contínuo, aquele oceano de gente gremista, instintivamente foi se abrindo. Tal qual numa versão feminina de Moisés, um mar azul, preto e branco ofertou passagem.  Prodígio. Guiada apenas por imensa gratidão, a guria atravessou com êxito o pátio que fervilhava.  E assim, cansada, mas orgulhosa, emocionada, conseguiu encostar as mãos, repousando também a face naquelas paredes cilíndricas e pulsantes. Concreto carregado de vida, tijolos e materiais esfuziantes de história. Primeiro ofegante, em seguida estática. Assim permaneceu. Sorria. Sentia uma reconfortante paz. Algo que irradiava. Uma paz extraordinariamente olímpica, uma paz extraordinariamente monumental.

 Jorge Bettiol.



Nenhum comentário: